Uma adolescente de 17 anos, pobre, negra, obesa, analfabeta e grávida, pela segunda vez, do próprio pai. Essa é Claireece Precious Jones (Gabourey Sidibe), personagem central do filme ‘Preciosa – Uma História de Esperança’ (Lee Daniels, Eua, 2009). Precious, como é chamada a garota, vive com a mãe (Mo’Nique), que também agride e abusa da filha, no subúrbio de Nova York dos anos 80 e as duas dependem da ajuda do governo para sobreviver.
A adolescente parece ter o mundo contra si, numa Nova York bem distante daquela onde passeia o glamouroso quarteto de Sex and The City. Diante de tanto infortúnio e falta de perspectiva, Precious se fecha e parece não reagir. Enquanto sofre todo tipo de humilhação, ela se refugia em devaneios (imagina ser magra e loira ou ter um homem branco e endinheirado aos seus pés). O momento em que é estuprada pelo pai aparece nas lembranças de Precious e, para piorar a situação, a mãe coloca a filha como culpada, chamando-a de “vagabunda” e afirmando que “ela roubou meu homem”. Subjugada pela família, consegue vislumbrar um novo caminho através da educação (expulsa da escola tradicional, ela passa a frequentar uma escola alternativa) e da amizade da professora Rain (Paula Patton), que a estimula a expressar suas emoções por meio da escrita.
O filme é impressionante e me trouxe de volta à reflexão um tema muito associado ao medo no universo feminino: o estupro. Recentemente, o programa Saia Justa (do canal a cabo GNT) discutia o que uma das apresentadoras chamou de "vulnerabilidade da vagina". É comum que pais e mães se preocupem mais com as filhas do que com os filhos. Hoje, a maior exposição de casos de estupro e pedofilia na mídia deixa muita gente de cabelo em pé. No Saia Justa, a jornalista Mônica Waldvogel pediu que cada uma falasse um pouco da sua experiência em relação a esse assunto e elas contaram que, ainda durante a puberdade, se deram conta da própria vulnerabilidade. O estupro tornou-se, então, uma possibilidade apavorante. O que passou batido durante o programa são os aspectos que vão muito além da “fragilidade” corporal da mulher. De fato, existe a questão anatômica: a vagina é vulnerável diante de um estuprador, que tem maior força física.
O crime de estupro, no entanto, ultrapassa os limites do desvio de caráter ou da psicopatia (o estuprador costuma ser chamado de “doente” logo de cara). Estamos imersos numa cultura machista perversa, que invariavelmente define o homem como sujeito e a mulher como objeto. As bases da ideologia androcêntrica colocam o sexo feminino como o ‘outro’, sempre ligado à subjetividade, à passividade, ao âmbito privado/doméstico, à natureza, à fragilidade e ao corpo. Mulher e corpo compõem, sem dúvida, uma trama que merece atenção. Na produção midiática isso fica bem claro e já faz tempo que as feministas apontam nessa direção, como descreve Graciela Natansohn, no artigo ‘Feminismo, Estudos Culturais e Comunicação’: “As mulheres observadas nos meios de comunicação, na tevê, no cinema, nas revistas, pelas primeiras feministas que repararam no poder cultural e ideológico da mídia não eram aquelas que o feminismo reivindicava. Não eram sujeito, mas objeto do olhar e do desejo masculino”. As relações de poder que se estabelecem entre os sexos é que colocam a mulher e seu corpo numa posição extremamente desfavorável e vulnerável. Que mulher nunca se sentiu agredida, invadida e (o pior) impotente diante de investidas masculinas, que vão desde uma ‘buzinada’ até o contato físico não-consentido, passando por frases das mais grosseiras e que, para muitos, se confundem com elogios?
O corpo feminino é objeto de desejo e de certo sentimento de posse masculino. Além disso, observamos que, muitas vezes, as próprias mulheres são apontadas, ainda que nas entrelinhas, como responsáveis pelos crimes sexuais. Um caso recente foi o das “pulseiras do sexo”: uma menina de 14 anos, que usava as pulseiras, foi estuprada e morta por quatro garotos. Criou-se um clima de pânico em torno dos acessórios coloridos e os veículos de comunicação não falavam em outra coisa. É absurdo, entretanto, culpar as pulseiras (e, indiretamente, a menina, por usá-las), como explica o psicanalista e doutor em educação Alessandro Marimpietri: “O que acontece nesses casos de violência sexual é que a mulher passa de vítima a algoz. A menina foi vítima de abuso por quatro pessoas, não importa as cores das pulseiras que ela estava usando. É perverso supor que aquelas pulseirinhas despertaram um espírito violentador. Eles eram estupradores, eram pessoas que violentariam. Se não fossem as pulseiras, se buscaria justificativa em uma saia curta. Então o perigo é criar um terror nessa meninada: se você, mulher, vivenciar sua sexualidade de maneira explícita e livre, pagará com o seu corpo”.
Uma visão mais ampla nos permite entender que a violência sexual passa por aspectos culturais e ideológicos, indo além das informações “palpáveis” e das conclusões superficiais proferidas pela mídia. No Brasil, a Lei 8.072, de 1990, classifica o estupro (“constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”) como crime hediondo e, portanto, inafiançável, com pena de 6 a 10 anos de reclusão. Contudo, mulheres continuam sofrendo crimes sexuais diariamente, além de agressões, violência doméstica e discriminação.
A situação é muito pior em países como o Afeganistão. Em reportagem intitulada ‘Afeganistão, um inferno para as mulheres’ e publicada na Revista Veja (edição de 19 de maio), a jornalista Thais Oyama conta que, em 2009, o presidente Hamid Jarzai aprovou uma lei que obriga as mulheres xiitas a fazerem sexo com seu marido todas as vezes que ele exigir (sob pena de ser privada de sustento por ele). A ex-deputada Fawzia Koofi recebeu ameaças de morte e sofreu um atentado a tiros após criticar a aprovação do chamado “estupro marital” para a minoria xiita (na imagem acima, mulheres afegãs protestam contra a aprovação da lei). O perigo, então, parece estar menos na tal “vulnerabilidade da vagina” e muito mais na posição ocupada pela mulher dentro da cultura androcêntrica, patriarcal e excludente em que vivemos.
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