Lúcia Murat é jornalista, cineasta, militante e mulher. Ela viveu na clandestinidade, foi presa e torturada com os métodos comuns às ditaduras da época: "espancamentos generalizados, pau de arara, choques elétricos na vagina, na língua e pelo corpo, utilização de baratas vivas pelo corpo, e um estranho método de tortura sexual."¹ Em 1989, Lúcia lança o filme-documentário "Que bom te ver viva", com roteiro e direção dela, onde se vê claramente seus sentimentos e ideias. O filme mistura depoimentos de ex- prisioneiras políticas com falas profundas e chocantes da personagem sem nome vivida por Irene Ravache. O documentário conta com o depoimento emocionado e revelador de oito mulheres, que sofreram tortura durante o período militar. Sete delas falaram de forma direta, com o enquadramento semelhante ao de retrato 3x4, e uma deu seu depoimento em forma de carta. Entre as falas mostra-se manchetes da época e imagens de celas. Lúcia foi anistiada em 1979, mas ficou com problema de sensibilidade na perna, dentre outras tantas marcas.
São estas últimas, as que não são tão descritíveis quanto a violência física, que "Que bom te ver viva" vem nos trazer, mostrar a "vitória" de manter a sanidade depois de tudo. Quais são as dúvidas, as dores e as violências que essas mulheres sentiram e sentem depois do DOI-CODI? Como é a "nova" vida, o continuar com lembranças tão duras? Como se comportam a família, a sociedade?
Uma questão é presente na fala de praticamente todas entrevistadas. Por que eu sobrevivi e outros companheiros e companheiras não? Junto com essa pergunta há o sentimento de dor pela perda e um sentimento de culpa, culpa por estar viva, culpa por ter, quem sabe, delatado companheiros, vivendo, assim, “a degradação quanto ser humano", como diz Maria Luiza. Se por um lado tem-se a força da ideologia, a fé de que se estava lutando por algo maior esbarrava no sofrimento.
Um momento importante do filme é quando a personagem de Irene Ravache questiona a carga negativa que continua pesando sobre ela. Ela continuava sendo a terrorista e seu torturador, o médico. Critica a imprensa e seu discurso hegemônico de verdade única da ciência, do que se diz racional, brincando com o que se diria sobre os médicos que levaram ao extermínio judeus na 2ª guerra Mundial. Outra imagem que pesa sobre as presas políticas é a de mártir. "Ninguém quer trepar com Mártir, com Ave Maria, quem quer trepar com Joana D'arc?". A negação dos outros ao prazer sexual da mulher depois dos estupros, como se ela não tivesse mais esse direito. Espera-se que ela se sinta eternamente marcada e ferida. Cria- se um tabu em cima disso. Cria- se um tabu em cima de muitas coisas.
Estrela Bohadana, uma das entrevistadas, conta que não se deve falar sobre a tortura. É um assunto não tocado na família, pois incomoda. As pessoas não querem ouvir como elas se sentem, essas pessoas se constrangem, querem que elas esqueçam trancando-as em solidão. Se as pessoas não desviam do assunto por constrangimento, o fazem com desdém, como se o passado fosse algo ultrapassado, velho. A falta dos desaparecidos ainda é e sempre será latente pra elas, mas, ao que parece, de pouca importância aos outros. O filme questiona: "quem vai ver um filme sobre tortura?"
Entre os traumas, além do medo de insetos, pesadelos, alucinações, enjôos, fica o peso. As palavras usadas no documentário são " eu não posso ser sacaneada sem pensar nisso", ou seja, elege-se torturadores por toda a vida. Ver os torturadores em todos os homens, não ter esperança e achar que o sofrimento voltará a qualquer momento, estar por muito tempo à beira da loucura. Essa é a realidade dessa e de outras tantas mulheres.
Elas apontam a maternidade como ponto chave do renascimento pós-torturas, realmente um resgate à vida. A ideia de que "eles querem acabar comigo, porém nasce mais um", como diz Jessie Jane. Maria do Carmo foi comandante de guerrilha, taxada de terrorista, contudo, segundo ela, foi no parto que ela descobriu a "maravilha" de ser mulher, ela diz q os homens querem mandar no mundo porque a barriga deles só produz cocô, a nossa produz vida.
Outro ponto de semelhança entra as mulheres é a certeza de que nada deve ser apagado da memória. Elas sofreram crimes que tem culpados, os quais devem pagar por eles. Elas lutaram por uma outra sociedade, uma melhor. Criméia de Almeida sobreviveu ao Araguaia, Jessie Jane sequestrou aviões, todas sofreram violência física, sexual e psicológica, têm a marca de serem acusadas de criminosas, mesmo sabendo que não eram, que não são. São heroínas sim, mas querem apenas ser gente. Quase 20 anos depois, elas agem, lutam cada uma de sua forma, como historiadoras, educadoras, em grupos femininos de bairro, em partidos políticos, mas sem deixar de pensar no social, sem deixarem de serem guerreiras.
Termino conectando a tristeza e o pessimismo da nossa personagem sem nome, que finaliza o documentário atrás das grades do seu apartamento, em analogia às grades da prisão, se denominando um "cachorro ferido", com um trecho do texto de Cesar Kiraly sobre o filme: "porque é na feminilidade, dilacerando-a, que a tortura realiza os efeitos mais nefastos, porque a tortura, historicamente defendida, atualiza uma estratégia de dominação sobre as mulheres e a expande para todos os cantos. A tortura se firma como um constrangimento público para se falar dela, tornando, como instrumento de sua instituição, a vítima em seu próprio algoz. Publicamente o torturado é interpelado como aquele que esconde os motivos que o levaram a ser colocado naquela posição. Resta um contínuo: ‘o que será que ela fez para merecer?’ Mais ou menos como a antiga indagação acerca da responsabilização da alma por alguém ter nascido mulher."²
Link do filme pelo Emule:
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1. Entrevista de Lúcia Murat à Revista Época http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT935838-1655,00.htm
2. Texto do sociólogo Cesar Keraly à Carta Maior http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16433&editoria_id=5
Fotos: http://www.taigafilmes.com/quebomte.html
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