“A identidade é uma construção que se narra”. O pensamento de Nestor Canclini explica bem a investida feminista de dentro dos ambientes religiosos. Constatação inusitada apenas em primeira instância.
Pensar no “sujeito híbrido” de Canclini é lembrar a possibilidade de articulação e de negociação dentro de grupos que pareciam tão fechados. Segundo o pesquisador argentino, a perspectiva de uma identidade coesa e completamente formada não se sustenta. É o que ele afirma em trecho do livro “Latino-Americanos à procura de um lugar neste século”:
A identidade, dinamizada por esse processo (de comunicação multicontextual) , não será apenas uma narrativa ritualizada, a repetição monótona pretendida pelos fundamentalistas. Ao se tornar um relato, que reconstruímos com os outros, a identidade se torna também uma co-produção.
O feminismo brota de dentro para fora das igrejas, templos, mesquitas. Os (as) próprios (as) fiéis articulam os preceitos religiosos que acreditam e denunciam os padrões da doutrina que ferem outras crenças pessoais. Um bom exemplo é o grupo Católicas pelo Direito de Decidir (CDD/BR) que se auto-intitulam como “uma entidade feminista, de caráter inter-religioso, que busca justiça social e mudança de padrões culturais e religiosos vigentes em nossa sociedade, respeitando a diversidade como necessária à realização da liberdade e da justiça”.
As CDD/Br afirmam o compromisso, em seu site, de ir além da doutrina cristã e se posicionam em defesa da descriminalização do aborto, da luta pela igualdade de gênero e do combate ao abuso de poder com relação à mulher, independentemente da sua religião.
Assista à uma entrevista com Verónica Díaz, diretora da CDD/ Chile:
Assista à uma entrevista com Verónica Díaz, diretora da CDD/ Chile:
Outro exemplo interessante é da BAOBAB - For Women's Human Rights. A ONG feminista nigeriana luta para garantir os direitos da mulher em todas as instâncias, incluindo questionando a sua representação dentro da religião islâmica. A BAOBAB conta com o apoio de ativistas, cientistas sociais, advogados (as) e religiosos (as) ligados a fé muçulmana em 14 cidades do país africano.
No site da ONG é possível fazer o download do Women's Right in Muslim Laws, algo como Direitos das Mulheres pela Leis Muçulmanas (em inglês), livro produzido pelo grupo em 2005. Dividido em 14 tópicos, o código prevê leis de conduta com relação a temas como casamento, divórcio, maternidade, igualdade de gênero, vestimentas, direito a propriedade e a educação, e liderança feminina: tudo isso, buscando o denominador comum do Alcorão. O documento procura novas interpretações do livro sagrado para combater injustiças históricas a que as mulheres são submetidas. O que fica evidente já no primeiro tópico: casamento. Ainda é comum que em países islâmicos as mulheres sejam prometidas para o matrimônio e, muitas vezes, só conhecem o noivo no dia do casamento. Em algumas regiões os contratos são firmados quando a noiva ainda é criança e é comum que o pai decida quando ela estará pronta para o casamento e para a relação sexual.
A resposta do código vem de uma passagem do próprio Alcorão:
"O pai de uma mulher arranjou seu casamento quando ela era uma matrona e ela não gostou daquele casamento. Então, ela foi até o Profeta (e reclamou) e ele declarou como inválido aquele casamento". (Buhari (9:78 veja também 7:69).
Apenas para ilustrar o discurso que legitima a exposição de crianças (apenas do sexo feminino) ao casamento, assista à entrevista com o encarregado de oficializar os matrimônios na Arábia Saudita, Ahmed Al Mubi. A justificativa é a de que o próprio Profeta teria mantido relações sexuais com sua esposa Aisha quando ela tinha apenas 9 anos. (dublado em espanhol) :
O livro Women's Right in Muslim Laws é firme diante desta crença comum e afirma que muitos estudiosos se dedicam em pesquisar qual era a verdadeira idade de Aisha. O que se sabe, segundo o livro, é que o Profeta conhecia a criança, uma vez que ela era filha de um de seus mais velhos amigos, e costumava brincar com ela. Alguns estudos apontam para a probabilidade de Aisha ter 20 ou 29 anos quando o casamento aconteceu. “Não há qualquer passagem que comprove o apoio do Profeta ao casamento com crianças”, finaliza o código.
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