Rosalind "Roz" Penfold era uma mulher bonita, inteligente e carismática, CEO de uma bem-sucedida empresa de marketing e respeitada pelos seus pares de trabalho. Sua vocação para reuniões, números e dinheiro, porém, não poderia protegê-la do efeito devastador que o romance, as rosas perfumadas e o anel de noivado têm sobre o coração feminino. Foi assim, sem perceber o quanto seu coração havia se deixado levar, que Roz caiu na sedução de Brian, um homem qualquer e extremamente específico nas suas exigências para um relacionamento. Primeiro, ele deixou claras as suas intenções: era um romântico e, portanto, desejava casar-se, criar família, ser um só com Roz. A senhorita Penfold, obviamente, não titubeou e deixou alguns de seus negócios frente à empresa para se dedicar à nova inclinação: cuidar do seu marido e do seu lar.
Sua mãe ficou feliz com o casamento, mas dentro de alguns meses achou que a filha se apressara ao escolher uma vida dedicada às quatro paredes da casa que ela própria mantinha, sem a ajuda do marido. Roz não escutou a mãe, afinal ela fizera o mesmo e ainda precocemente. Rosalind havia completado 30 e poucos anos há pouco, a maior parte da sua vida adulta dedicada à empresa, era mais do que hora de deixar o dia-a-dia sisudo na empresa e embarcar numa aventura apaixonada com um homem que vivia somente pra ela. Talvez a mãe estivesse desconfiada do olho roxo que dissera ser de uma queda da escada, mas que na verdade havia resultado de um momento de descontrole de Brian. Ele estava ciumento, ela não tinha feito por onde - só Deus sabia o quanto amava aquele homem - mas ele sempre havia sido tão carinhoso... Certamente, ficou dominado pela fúria que de quando em quando atina no coração dos homens, ao se pensar sem a mulher amada. Por uma vez, Roz duvidou: "Que tipo de homem será este com quem me casei?". Bastou algumas horas para se aplacar toda a sangria e veneno de um pequeno acontecimento e, como se respondesse à sua questão, passou a lembrar para si: "Mas ele diz que me ama".
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Os parágrafos escritos acima resumem o começo do livro de histórias em quadrinhos (HQ) Mas ele diz que me ama (Ediouro), da escritora inglesa Rosalind B. Penfold, que foi publicado no Brasil em 2006, sem muito alarde editorial.
Capa do livro/Divulgação
A obra autobiográfica mostra como a vida de Roz se transforma a partir do momento em que se casa com Brian: de empresária rica e realizada, torna-se dona de casa submetida aos maus tratos do marido, que vão da violência verbal à agressão física, além das traições, da maneira que ele a destrata frente à sua família e amigos, a extorsão de dinheiro, dentre outros. Brian encarna o estereótipo do machão ciumento, controlador e violento, que desfruta da ótima condição financeira de Penfold e, para mantê-la sob sua asa, utiliza-se do amor romântico. Como demonstrado no texto introdutório do post, a frase, que dá título ao livro, funciona como sugestão hipnótica, levando Roz a uma espécie de loucura onde imagina que todas as atitudes do marido são justificadas pelo carinho que ele devota à ela, fazendo-a cada vez mais refém dele.
Ano após ano, as abordagens nada românticas de Brian tornam-se cada vez mais dolorosas e a senhora Penfold se vê obrigada a fugir algumas vezes de casa e se refugiar em casa materna - fugas que não duram muito tempo, porque ela fica presa ao círculo vicioso de medo que seu homem a abandone por outra mulher. Ainda assim, retorcida pela sua condição esquizofrênica, ela vai encontrando uma maneira, ainda que microscópica, de aliviar seu sofrimento: começa a desenhar uma HQ sobre sua vida com Brian. É colocando suas experiências no papel que Roz descobre o que estava evidente: ele não te ama.
Primeira página da história, que é contada em um enorme flashback
Os desenhos realizados por Penfold se transformaram no livro
Dragonslippers: This is What an Abusive Relationship Looks Like (2005, Black Cat) - nome em inglês de
Mas ele diz que me ama - e no site
Friends of Rosalind.
O livro
A HQ é o primeiro e único trabalho dela, que não é uma desenhista profissional, dona de um traço amador e rudimentar. O amadorismo do desenho concede verossimilhança ao relato, afinal, trata-se de uma não-quadrinhista produzindo uma história como ferramenta de escape - e, no ato de escrita ainda subrepticiamente - como uma tentativa de se comunicar com o mundo. Em contraste com a 'pobreza' dos desenhos está uma excelente narrativa, domínio de ritmo e de dramaticidade, fazendo com que, juntamente com a personagem, o leitor se emaranhe na espiral de desenganos alimentados pela própria Roz. Antes mesmo de atingir metade do livro a sensação preponderante é a de que Penfold não terá outra escapatória para seus problemas com o marido senão a morte - é então quando ela começa a desenhar e frequentar um psiquiatra.
Rosalind Penfold ilustrando/bi.gazeta.pl
É através da psiquiatria que se instaura um ponto polêmico: o médico compara a situação de Roz ao de um animal testado pelo médico Pavlov, que enunciou uma teoria, hoje clássica, sobre
comportamento condicionado. Em resumo, o médico de Roz crê que ela está tendo um comportamento obsessivo em relação ao marido, viciada no próprio medo/amor que criou, quando em verdade ela poderia denunciá-lo e cair na real de que ele sentia qualquer coisa por ela, menos amor. É um ponto complicado porque desloca a culpa do prolongamento dos maus tratos, tradicionalmente atribuída ao homem conformado pelo patriarcado, para a mulher que aceita a condição de exploração. Discutir se há mulheres viciadas em amores violentos é importante, mas deve-se ter cuidado, uma vez que historicamente a patologização do comportamento feminino se demonstrou extremamente preconceituosa e irracional - não se pode esquecer que vivemos em uma cultura machista*.
Como o machismo fez Roz desaparecer completamente.
Indo pelo outro caminho, o da publicidade da condição de rebaixamento perante o homem, é aí que a HQ demonstra seu valor social. Ao perceber que somente revelando ao maior número de pessoas que convivia com um monstro que Roz conseguiu se livrar do marido, sem medo de ser atacada por ele - embora tenha recebido proteção policial. A assunção do fato de ter se submetido ao marido é mostrado de maneira bastante interessante: a personagem vai listando pequenos atos de "romantismo" e de desprezo dele e se convencendo da real intenção de cada um deles. Ao fim da HQ temos a impressão de haver atravessado um calabouço sem portas ou janelas e conseguido fugir do inescapável. Junto a Roz damos um merecido - e inefável - suspiro.
Por fim, é interessante lembrar que o feminismo tem mais força quando articulado em primeira pessoa, portanto a autobiografia é uma arma genuína do feminismo. Mesmo sem levantar a bandeira do movimento, Roz dá um passo em prol da luta feminista.
* Em tempo: há uma obra brasileira de jornalismo investigativo que trata de mulheres apaixonadas por psicopatas. O livro
Loucas de Amor, de
Gilmar Rodrigues, se propõe a investigar, dentre outras coisas, se essas mulheres possuiriam algum distúrbio psicológico voltado para relacionamentos violentos. A obra foi lançada também em uma versão ilustrada - com menos histórias - ilustrada por
Fido Nesti.
O site
Após publicação do livro Rosalind Penfold criou o site http://www.friends-of-rosalind.com/com links pra críticas do seu livro em todo o mundo, sites de ONGs e associações de mulheres, além da interessantíssima seção "Learn the warning signs of abuse" com avisos ilustradas para que uma mulher saiba como descobrir que está se envolvendo com o cara errado. As ilustrações seguem reproduzidas abaixo.
If he tries to go too fast, too soon, this spells DANGER If he demands that you give up your dreams, this spells DANGER If he insists that his plans are more important than yours, this spells DANGER If he uses derogatory language towards your family & friends, this spells DANGER If he is inconsiderate, disrespect- ful, or puts you down in public, this spells DANGER If he blames you for what has happened and minimizes his abuse, this spells DANGER |
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|
If he shows intense,
unwarranted jealousy,
this spells DANGER
Your better question is,
"What is he doing wrong?"
P.S.: Peço licença pra uma dose de pessoalidade no texto. Me deixa indignado o fato de não se ter feito um trabalho melhor de divulgação deste livro, uma vez que o relato nele contido possui a força para encorajar uma mulher a expor as agruras vividas num relacionamento machista. Penfold é reconhecida internacionalmente - apesar de aparecer pouco em público e possuir apenas uma foto, de costas, circulando em páginas de Internet. Há quatro anos, quando comprei o livro como presente para uma ex-namorada, não havia quase nenhuma informação sobre ele e não era o tipo de HQ que o público de quadrinhos procurava. Escolhi por se tratar de um tema feminino (lembrando que era um presente) e porque em algumas das ocasiões do namoro eu me questionava sobre a possibilidade de assumir posições machistas sem perceber. Ao terminar a leitura senti que o livro é uma excelente ferramenta de conscientização, tanto para homens e principalmente quanto às mulheres, acerca dos males do machismo que oprime os gêneros.
Marcelo, muito bom post. Acho que esse livro deveria fazer parte da cesta básica!
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