terça-feira, 18 de maio de 2010

Sai daí, príncipe encantado!


"Era uma vez, uma jovem garota que era forçada a trabalhar como servente para sua malvada madrasta e suas duas filhas. Um belo dia, é anunciado que irá acontecer um grande baile no castelo para que o príncipe escolha sua futura esposa dentre todas as moças do reino. Com ajuda de uma fada-madrinha, Cinderela vai ao tão esperado baile. Assim que o príncipe percebeu a presença da belíssima moça, apaixonou-se completamente e a chamou para dançar. Porém, quando o relógio badalou as doze batidas, Cinderela teve que sair correndo pela escadaria do castelo, deixando o seu sapato de cristal pelo caminho. O príncipe, muito preocupado por não saber o nome da moça ou como reencontrá-la, pegou o pequeno sapatinho e saiu em sua busca no reino e em outras cidades. Quando chegou na casa da madrasta, Cinderela experimentou o sapatinho, mas antes mesmo que ele servisse em seus pés, o príncipe já tinha dentro do seu coração a certeza de que havia reencontrado o amor de sua vida. Cinderela e o príncipe se casaram e foram felizes para todo o sempre…".

Durante a infância e outras fases da vida, ouvimos contos, lemos livros e assistimos filmes e novelas que apresentam um enredo parecido com o citado acima: mostram histórias de jovens garotas que têm uma vida cheia de impasses e só alcançam a plena felicidade quando encontram o tão desejado “príncipe encantado”. Não é à toa. Todo mundo sabe que também é interesse dos veículos midiáticos gerar uma identificação no espectador. E quando surgiu essa história de príncipe encantado que irá garantir felicidade eterna para pobres mocinhas indefesas? Voltando para o início, para o começo da trajetória da vida feminina, percebemos que isso tem muito a ver com a própria criação e educação das garotas.

Faz parte da cultura da nossa sociedade "educar" a menina, desde cedo, para que ela seja mãe. Normalmente, um dos primeiros brinquedos que ela recebe é uma boneca, que, segundo o movimento feminista, nada mais é do que a representação da responsabilidade com a família, além de ensinar as crianças a se conformarem com os papéis de dona de casa. Também é importante destacar que é muito comum que as meninas sejam superprotegidas durante boa fase de sua vida, tanto na infância, quanto na própria adolescência. A criança é educada com a ideia de que sempre haverá outra pessoa mais forte para protegê-la e defendê-la quando necessário.

Foi a partir disso que Colette Dowling escreveu o livro Complexo de Cinderela - O Medo Inconsciente das Mulheres por Independência, que pode ser adquirido aqui. O livro foi escrito em 1981 e sua principal tese é a de que o desejo inconsciente dos cuidados do outro era um dos fatores que fazia com que as mulheres criassem certa dependência em relação aos homens. Para ela, isso estava diretamente relacionado com o fato de que algumas mulheres apresentam uma série de memórias e atitudes distorcidas, iniciadas na infância, que poderiam gerar uma sensação de duplo vínculo na fase adulta: ao mesmo tempo em que a mulher deseja a independência e a conquista de sua liberdade, também alimenta um desejo profundo de ser protegida contra o que é visto como difícil ou hostil no mundo.


Em uma parte do livro, Dowling explica que o Complexo de Cinderela é uma rede de atitudes e temores profundamente reprimidos que, além de gerar esse sentimento de dependência, impede as mulheres de utilizarem plenamente seu intelecto e criatividade. Para a autora, assim como Cinderela, o desejo por algo externo que venha a transformar sua vida fazia com que jovens de 16 e 17 anos muitas vezes se refugiassem em um casamento, buscando a proteção do "príncipe encantado", do homem de sua vida que irá garantir segurança e felicidade para sempre.

Apesar de essa teoria ter sido desenvolvida há mais de 20 anos, ela está tão presente na sociedade, que ainda é possível perceber a existência de mulheres que tem nível superior e condições propícias para a independência, mas preferem esconder-se em um casamento, deixando de lado diversas oportunidades que possam aparecer. Além disso, mesmo mulheres aparentemente cheias de êxito em suas carreiras ainda tendem a subordinar-se aos outros e a gastar a maior parte de suas energias em busca de amor, ajuda e proteção.

Cena da peça "Desafinado"

Isso pode ser evidenciado no espetáculo “Desafinado”, de Jorge Arthur, que ainda está em cartaz no Ciranda Café, Rio Vermelho. A peça, que aborda diversos assuntos como amor, sexo, masturbação, tomada de consciência do corpo, traição, família e dependência feminina, conta a história de um casal que está em crise no casamento devido ao fato de a esposa exigir mudanças no relacionamento e dar seus primeiros passos para a independência. Durante a peça, é mostrado o lado da protagonista que abandonou a sua carreira de advogada para apoiar a carreira de músico do marido e para cuidar do filho. Porém, nessa fase da vida, ela viu que nada do que ela fez realmente valeu a pena e resolve retomar a carreira jurídica, apresentando ao marido as exigências que devem ser seguidas para continuar com a relação.

Ao invés de se refugiarem em um casamento, abrindo mão do seu futuro e de sua própria carreira, já passou da hora das mulheres se emanciparem dessa busca pelo "príncipe encantado". Tudo bem que a maioria das pessoas anseiam pela felicidade e, muitas vezes, a associam a um relacionamento, ao amor, mas também é necessário entender que a partir do momento que se abre mão da própria independência, isso não pode ser saudável - a não ser que a mulher queira e goste disso. Na conclusão do seu texto, Dowling aponta que a solução para se livrar desse complexo é justamente procurar em si os meios de construir sua própria felicidade e se focar nos seus objetivos. Quem precisa de um príncipe encantado?

Flávia Santana


Fontes e textos relacionados:


1) Complexo de Cinderela

2) A mulher e o Complexo de Cinderela

3) Download do livro Complexo de Cinderela -
O Medo Inconsciente das Mulheres por Independência

4) Identificação dos adolescentes de hoje com a personagem de cinderela







Um comentário:

  1. Marina Warner é autora de um livro fantástico sobre os contos da infância, "Da fera á loira, sobre contos de fadas e seus narradores", SP, Companhia das Letras, 1999. Vale a pena ler.

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