quinta-feira, 24 de junho de 2010

A Lei de Bechdel

Alison Bechdel é uma cartunista americana, autora dos quadrinhos Dykes To Watch Out For, que começou no início dos anos 80 e representa uma das primeiras aparições importantes da cultura lésbica nas mídias massivas.

Em DTWOF, Bechdel escreve, num dos diálogos, o que vem a ser conhecido hoje como a Lei Bechdel. Nessa tirinha, uma das personagens descreve a “regra” que todos os filmes devem seguir para que ela possa assistir a ele:

1. Deve ter no mínimo duas mulheres no filme...

2. ...que conversam uma com a outra...

3. ...a respeito de algo que não seja um homem.

Essa é uma regra muito simples, não exige que as personagens falem necessariamente sobre feminismo, outras mulheres ou a condição feminina, mas de fato muitos filmes falham nela, o que vem sendo pauta de posts em vários blogs.

Posteriormente, vem sido adotado mais um critério: que essas mulheres tenham nomes (ou seja, sejam sujeitos na trama), o que dificulta ainda mais a aprovação dos filmes na Lei Bechdel.

Não é nenhum método científico, mas é bastante interessante notar como as mulheres no cinema, na maioria dos casos, são colocadas como apenas acessórios discursivos no enredo, e não tem uma vida ou uma história própria: o único assunto que as concerne é(são) o(s) homem(ens). Como o mais importante da história, o homem (ou o personagem masculino) é com que as mulheres das tramas tem de se preocupar e se encarregar.

Como escreveu Juliana Sampaio no blog da Lápis Raro, A regra de Bechdel é simples e exige apenas que o cinema “reconheça a existência de mulheres entre as pessoas do mundo [...]e que essa parcela de pessoas também possa conversar sobre outros assuntos que não seja a parcela restante. Aquilo que eu, você, minhas amigas, minha filha, e a maioria das mulheres fazem todos os dias: existir por si mesmas”.

Parece que, não seguindo esses três simples passos, o que é a regra geral, a maioria dos filmes está diminuindo a vida feminina à uma preocupação com o que realmente importa: a vida masculina, ou o(s) relacionamento(s) com um homem.

Quais filmes você assistiu recentemente que passam no teste de Bechdel? Aproveite para contribuir na lista de filmes do site sobre a lei: http://bechdeltest.com/.

amanda b.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Vulnerabilidade Ideológica

Uma adolescente de 17 anos, pobre, negra, obesa, analfabeta e grávida, pela segunda vez, do próprio pai. Essa é Claireece Precious Jones (Gabourey Sidibe), personagem central do filme ‘Preciosa – Uma História de Esperança’ (Lee Daniels, Eua, 2009). Precious, como é chamada a garota, vive com a mãe (Mo’Nique), que também agride e abusa da filha, no subúrbio de Nova York dos anos 80 e as duas dependem da ajuda do governo para sobreviver.

A adolescente parece ter o mundo contra si, numa Nova York bem distante daquela onde passeia o glamouroso quarteto de Sex and The City. Diante de tanto infortúnio e falta de perspectiva, Precious se fecha e parece não reagir. Enquanto sofre todo tipo de humilhação, ela se refugia em devaneios (imagina ser magra e loira ou ter um homem branco e endinheirado aos seus pés). O momento em que é estuprada pelo pai aparece nas lembranças de Precious e, para piorar a situação, a mãe coloca a filha como culpada, chamando-a de “vagabunda” e afirmando que “ela roubou meu homem”. Subjugada pela família, consegue vislumbrar um novo caminho através da educação (expulsa da escola tradicional, ela passa a frequentar uma escola alternativa) e da amizade da professora Rain (Paula Patton), que a estimula a expressar suas emoções por meio da escrita.

O filme é impressionante e me trouxe de volta à reflexão um tema muito associado ao medo no universo feminino: o estupro. Recentemente, o programa Saia Justa (do canal a cabo GNT) discutia o que uma das apresentadoras chamou de "vulnerabilidade da vagina". É comum que pais e mães se preocupem mais com as filhas do que com os filhos. Hoje, a maior exposição de casos de estupro e pedofilia na mídia deixa muita gente de cabelo em pé. No Saia Justa, a jornalista Mônica Waldvogel pediu que cada uma falasse um pouco da sua experiência em relação a esse assunto e elas contaram que, ainda durante a puberdade, se deram conta da própria vulnerabilidade. O estupro tornou-se, então, uma possibilidade apavorante. O que passou batido durante o programa são os aspectos que vão muito além da “fragilidade” corporal da mulher. De fato, existe a questão anatômica: a vagina é vulnerável diante de um estuprador, que tem maior força física.

O crime de estupro, no entanto, ultrapassa os limites do desvio de caráter ou da psicopatia (o estuprador costuma ser chamado de “doente” logo de cara). Estamos imersos numa cultura machista perversa, que invariavelmente define o homem como sujeito e a mulher como objeto. As bases da ideologia androcêntrica colocam o sexo feminino como o ‘outro’, sempre ligado à subjetividade, à passividade, ao âmbito privado/doméstico, à natureza, à fragilidade e ao corpo. Mulher e corpo compõem, sem dúvida, uma trama que merece atenção. Na produção midiática isso fica bem claro e já faz tempo que as feministas apontam nessa direção, como descreve Graciela Natansohn, no artigo ‘Feminismo, Estudos Culturais e Comunicação’: “As mulheres observadas nos meios de comunicação, na tevê, no cinema, nas revistas, pelas primeiras feministas que repararam no poder cultural e ideológico da mídia não eram aquelas que o feminismo reivindicava. Não eram sujeito, mas objeto do olhar e do desejo masculino”. As relações de poder que se estabelecem entre os sexos é que colocam a mulher e seu corpo numa posição extremamente desfavorável e vulnerável. Que mulher nunca se sentiu agredida, invadida e (o pior) impotente diante de investidas masculinas, que vão desde uma ‘buzinada’ até o contato físico não-consentido, passando por frases das mais grosseiras e que, para muitos, se confundem com elogios?

O corpo feminino é objeto de desejo e de certo sentimento de posse masculino. Além disso, observamos que, muitas vezes, as próprias mulheres são apontadas, ainda que nas entrelinhas, como responsáveis pelos crimes sexuais. Um caso recente foi o das “pulseiras do sexo”: uma menina de 14 anos, que usava as pulseiras, foi estuprada e morta por quatro garotos. Criou-se um clima de pânico em torno dos acessórios coloridos e os veículos de comunicação não falavam em outra coisa. É absurdo, entretanto, culpar as pulseiras (e, indiretamente, a menina, por usá-las), como explica o psicanalista e doutor em educação Alessandro Marimpietri: “O que acontece nesses casos de violência sexual é que a mulher passa de vítima a algoz. A menina foi vítima de abuso por quatro pessoas, não importa as cores das pulseiras que ela estava usando. É perverso supor que aquelas pulseirinhas despertaram um espírito violentador. Eles eram estupradores, eram pessoas que violentariam. Se não fossem as pulseiras, se buscaria justificativa em uma saia curta. Então o perigo é criar um terror nessa meninada: se você, mulher, vivenciar sua sexualidade de maneira explícita e livre, pagará com o seu corpo”.

Uma visão mais ampla nos permite entender que a violência sexual passa por aspectos culturais e ideológicos, indo além das informações “palpáveis” e das conclusões superficiais proferidas pela mídia. No Brasil, a Lei 8.072, de 1990, classifica o estupro (“constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”) como crime hediondo e, portanto, inafiançável, com pena de 6 a 10 anos de reclusão. Contudo, mulheres continuam sofrendo crimes sexuais diariamente, além de agressões, violência doméstica e discriminação.

A situação é muito pior em países como o Afeganistão. Em reportagem intitulada ‘Afeganistão, um inferno para as mulheres’ e publicada na Revista Veja (edição de 19 de maio), a jornalista Thais Oyama conta que, em 2009, o presidente Hamid Jarzai aprovou uma lei que obriga as mulheres xiitas a fazerem sexo com seu marido todas as vezes que ele exigir (sob pena de ser privada de sustento por ele). A ex-deputada Fawzia Koofi recebeu ameaças de morte e sofreu um atentado a tiros após criticar a aprovação do chamado “estupro marital” para a minoria xiita (na imagem acima, mulheres afegãs protestam contra a aprovação da lei). O perigo, então, parece estar menos na tal “vulnerabilidade da vagina” e muito mais na posição ocupada pela mulher dentro da cultura androcêntrica, patriarcal e excludente em que vivemos.

O NEIM quer ser INEIM

Do Núcleo de Estudos da Mulher, Neim/UFBA, recebi esta mensagem:
A Universidade Federal da Bahia passa por mais um momento de mudanças, agora com a criação
de novos institutos de ensino. Na página da UFBA estão disponí­veis os projetos dos novos
Institutos, para consulta pública, e o Instituto NEIM é um deles.
Convidamos todos a ler o documento e opinar.
Acesse http://www.portal.ufba.br/destaques/proposta_ineim.pdf

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Uma breve análise do feminismo de Virgínia Woolf em Mrs. Dalloway





Vírginia Woolf, uma das fundadoras do movimento modernista inglês, nasceu em Londres e teve contato com o mundo literário desde cedo, através de seu pai o editor Leslie Stephen. Largamente conhecida por suas obras, Woolf apresentava em seus livros questões políticas, sociais e também um pensamento feminista. Refletia sobre a situação da mulher e suas limitações diante das imposições de um mundo masculino.

Em 1925 ela lança o livro Mrs Dalloway, romance que foge à típica escrita britânica da época. O livro narra as 12 horas que antecipam uma festa proporcionada por Clarissa Dalloway ao seu marido e convidados. Ao longo dessas horas apresenta-se o passado e o presente de personagens que fizeram parte da vida de Clarissa. Virgínia Woolf trabalha, nesta narrativa, com a identidade da protagonista que ao se casar deixa para trás sonhos, expectativas e logo se apresenta como a "boa esposa" e "boa anfitriã". Sabendo um pouco sobre a vida de Woolf, podemos ver também que muitos desejos e angustias da própria autora perrmeiam as situações descritas no livro, trazendo ainda mais veracidade a representação dos problemas femininos da época.



A escritora critica em sua obra a relação patriarcal da sociedade inglesa no inicio do século XX, reconhecendo a dificuldade da mulher em conquistar seu espaço diante da dependência econômica e do pouco acesso à educação. Woolf destaca essa condição feminina em seu livro, trazendo situações em que a mulher era “o reflexo do homem” ou oprimida por este. A exemplo da própria protagonista da obra, Mrs. Dalloway, que se escondia atrás do sobrenome do marido: só descobrimos depois que seu nome era Clarissa e que antes de casar-se chamava-se Miss Parry (sobrenome do pai). Estava sempre definida pelo outro, pelo homem, “pertencendo” primeiro ao pai e depois ao marido, mas nunca se pertencendo nem sendo ela mesma, Clarissa.

Na personagem de Peter Walsh, vemos que Clarrisa Dalloway era a “pefeita dona de casa” da época, com os bons constumes, as etiquetas, preocupações e cuidados da mulher “ideal”. Sempre preocupava-se com o bem estar do outro e com a posição que aparentava. Peter percebe que as posições de Clarissa haviam sido anuladas depois do seu casamento e que ela estava sempre de acordo com o marido, como uma sombra deste.

Outra crítica é feita por Woolf, quando cria o Sir Bradshaw, personagem que julgava o grau de “normalidade” de uma pessoa a depender das tarefas que assumia em relação ao seu gênero. Ou seja, se analisava uma mulher que tinha como habito a costura, os afazeres domesticos e maternos, concluia que era uma pessoa completamente normal.

Durante a narrativa, conhecemos personagens que são marcados, de uma forma ou de outra, pelas imposições patriarcais e matrimoniais da época: a exemplo de Mrs. Dempster, que vê o casamento como um sacrifício que torna a vida muito óbvia e massante. E Mrs. Bradshaw que se submete ao marido e se apaga do seu lado.

Mrs. Dalloway contextualiza a Inglaterra do início do século XX ao trazer em cada personagens caracteristicas da época. Ela luta pela causa feminina na fala de suas personagens e mostra uma sociedade pós guerra em momento de mundança, focando as relações patriarcais e matrimoniais.

Links e fontes:
http://queirosiana.blogs.sapo.pt/17451.html
http://orgialiteraria.com/?p=1540
http://www.releituras.com/vwoolf_menu.asp
http://oritameji.blogspot.com/2010/05/virginia-woolf-e-suas-mulheres-mrs.html
http://www.anpuhsp.org.br/downloads/CD%20XVIII/pdf/PAINEL%20PDF/Liliane%20Lopes%20Muniz.pdf
http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/viewFile/5474/6096

quarta-feira, 16 de junho de 2010

MGF até quando??

Antes de qualquer dado numérico ou de demarcações territoriais, é necessário definir MGF, um ritual que tem como expressão popular “circuncisão feminina”, e possui como nome mais apropriado Mutilação Genital Feminina (MGF) ou excisão. Existem basicamente três tipos:

Clitoridectomia ou sunna: consiste na remoção do prepúcio do clitóris ou mesmo na remoção completa do clitóris, é a forma mais “suave” de circuncisão;

Excisão: além de remover o prepúcio, extrai também o clitóris, os lábios menores, permitindo que os lábios maiores fiquem intactos e

Circuncisão faraônica ou Infibulação: consiste na remoção do prepúcio, do clitóris, dos lábios menores e maiores, e na sutura dos dois lados da vulva, deixando uma pequena abertura para a passagem da urina e do sangue menstrual.

Tornou-se muito comum nos diversos meios de comunicação atrelar a prática da MGF à cultura islâmica, porém há mulheres mutiladas entre cristãos, hindus e outras seitas, mas devido à grande difusão desta prática no islamismo, eles acabam por serem confundidos como genitores. Com isso, acredita-se que a origem da circuncisão não está no campo religioso, ao contrário do que muitos pensam, a religião neste caso, torna-se apenas um argumento mais poderoso para a prática e a aceitação, sem questionamentos. Pois, em alguns escritos sagrados, devido às diversas interpretações encontram-se referências para a prática da excisão.


Mais de 150 milhões de mulheres e meninas foram submetidas à mutilação genital feminina em todo o mundo. Segundo a UNICEF, cerca de três milhões de meninas se tornam vítimas dessa prática a cada ano. As justificativas para que esse procedimento seja conservado variam, além da típica intenção de manter a tradição religiosa ou de grupos étnicos, destacam-se também:

. motivos de higiene;

. questões estéticas, em relação a genitália feminina;

.pré-requisito para o matrimônio, pois homem algum aceitaria uma mulher não circuncisada;

.aumento do prazer sexual masculino;

. torna a mulher mais dócil, com a redução do seu desejo sexual, evitando uma possível relação extra-conjugal;

.ajuda na saúde da mulher, garantindo a sua fertilidade e o provimento de filhos sadios.

No entanto, dentre todas estas justificativas de ordem “higiênicas”, culturais, morais e com explicações de ordem médica, a principal função do ritual da MGF a que algumas mulheres são submetidas é o controle sobre a sua sexualidade e o corpo das mesmas (DINIZ, 1999). A permanência da circuncisão, só faz acrescentar um ponto a mais na enorme lista de fatores que, culmina na tradicional questão da submissão das mulheres durante o processo histórico. Claro, que tal visão possui um teor etnocêntrico, ocidentalizado e até com imposição de valores, porém até que ponto devemos ser tolerantes, perante a cultura do outro?


O continente Africano, é o recordista quanto ao número de mulheres circuncisadas, são 28 os países que mantêm essa prática, sem contar com alguns países asiáticos. O que mais intriga quanto à questão da excisão, é o fato de que os efeitos intencionados por ela não são alcançados, logo as justificativas dadas para a permanência dessa prática são infundadas. Não há, aqui, uma apologia a condenação das práticas culturais “sem fundamento” (de acordo com os méritos sociais), muito menos o seguimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos determinada pela ONU, mas uma apologia a saúde física principalmente, não desprezando a psicológica, porém esta fica num âmbito mais complexo.

Os problemas físicos – desenvolvimento de quadros de infecção sério após a cirurgia, além de carregarem importantes danos para a saúde reprodutiva por toda a vida, muitas das mulheres acabam morrendo (DINIZ, 1999) – estão relacionados diretamente a maneira como é feito o procedimento da mutilação: sem anestesia, sem higiene, uso de objetos não esterilizados e, muitas vezes, enferrujados e inapropriados.

Há muitas campanhas de instituições que tentam informar os perigos dessa prática, porém deve-se dá mais importância política para tal procedimento, pois a quantidade de mulheres circuncisadas é gigantesca. Sabe-se que a mudança de práticas culturais de muito tempo é extremamente difícil, por isso atitudes de conscientização, sejam governamentais ou não, devem ser tomadas o quanto antes.

Clip de um nativo da Costa do Marfim, Tiken Jah Fakoly, com sua música contra a excisão feminina, muito presente também no seu país.


Links e Fontes:

http://www.anis.org.br/serie/artigos/sa11(diniz)mutilacao.pdf

http://islamicchat.org/fgm.html

http://www.feminismo.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=698:cerca-de-3-milhoes-de-mulheres-sao-vitimas-de-mutilacao-genital-todo-ano&catid=1:direitos

http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos//Pagu/2008(30)/Venchi.pdf

Ninguém quer trepar com Joana D'arc - Uma resenha do filme "Que bom te ver viva" de Lúcia Murat [spoilers]



Lúcia Murat é jornalista, cineasta, militante e mulher. Ela viveu na clandestinidade, foi presa e torturada com os métodos comuns às ditaduras da época: "espancamentos generalizados, pau de arara, choques elétricos na vagina, na língua e pelo corpo, utilização de baratas vivas pelo corpo, e um estranho método de tortura sexual."¹ Em 1989, Lúcia lança o filme-documentário "Que bom te ver viva", com roteiro e direção dela, onde se vê claramente seus sentimentos e ideias. O filme mistura depoimentos de ex- prisioneiras políticas com falas profundas e chocantes da personagem sem nome vivida por Irene Ravache. O documentário conta com o depoimento emocionado e revelador de oito mulheres, que sofreram tortura durante o período militar. Sete delas falaram de forma direta, com o enquadramento semelhante ao de retrato 3x4, e uma deu seu depoimento em forma de carta. Entre as falas mostra-se manchetes da época e imagens de celas. Lúcia foi anistiada em 1979, mas ficou com problema de sensibilidade na perna, dentre outras tantas marcas.

São estas últimas, as que não são tão descritíveis quanto a violência física, que "Que bom te ver viva" vem nos trazer, mostrar a "vitória" de manter a sanidade depois de tudo. Quais são as dúvidas, as dores e as violências que essas mulheres sentiram e sentem depois do DOI-CODI? Como é a "nova" vida, o continuar com lembranças tão duras? Como se comportam a família, a sociedade?

Uma questão é presente na fala de praticamente todas entrevistadas. Por que eu sobrevivi e outros companheiros e companheiras não? Junto com essa pergunta há o sentimento de dor pela perda e um sentimento de culpa, culpa por estar viva, culpa por ter, quem sabe, delatado companheiros, vivendo, assim, “a degradação quanto ser humano", como diz Maria Luiza. Se por um lado tem-se a força da ideologia, a fé de que se estava lutando por algo maior esbarrava no sofrimento.

Um momento importante do filme é quando a personagem de Irene Ravache questiona a carga negativa que continua pesando sobre ela. Ela continuava sendo a terrorista e seu torturador, o médico. Critica a imprensa e seu discurso hegemônico de verdade única da ciência, do que se diz racional, brincando com o que se diria sobre os médicos que levaram ao extermínio judeus na 2ª guerra Mundial. Outra imagem que pesa sobre as presas políticas é a de mártir. "Ninguém quer trepar com Mártir, com Ave Maria, quem quer trepar com Joana D'arc?". A negação dos outros ao prazer sexual da mulher depois dos estupros, como se ela não tivesse mais esse direito. Espera-se que ela se sinta eternamente marcada e ferida. Cria- se um tabu em cima disso. Cria- se um tabu em cima de muitas coisas.

Estrela Bohadana, uma das entrevistadas, conta que não se deve falar sobre a tortura. É um assunto não tocado na família, pois incomoda. As pessoas não querem ouvir como elas se sentem, essas pessoas se constrangem, querem que elas esqueçam trancando-as em solidão. Se as pessoas não desviam do assunto por constrangimento, o fazem com desdém, como se o passado fosse algo ultrapassado, velho. A falta dos desaparecidos ainda é e sempre será latente pra elas, mas, ao que parece, de pouca importância aos outros. O filme questiona: "quem vai ver um filme sobre tortura?"

Entre os traumas, além do medo de insetos, pesadelos, alucinações, enjôos, fica o peso. As palavras usadas no documentário são " eu não posso ser sacaneada sem pensar nisso", ou seja, elege-se torturadores por toda a vida. Ver os torturadores em todos os homens, não ter esperança e achar que o sofrimento voltará a qualquer momento, estar por muito tempo à beira da loucura. Essa é a realidade dessa e de outras tantas mulheres.

Elas apontam a maternidade como ponto chave do renascimento pós-torturas, realmente um resgate à vida. A ideia de que "eles querem acabar comigo, porém nasce mais um", como diz Jessie Jane. Maria do Carmo foi comandante de guerrilha, taxada de terrorista, contudo, segundo ela, foi no parto que ela descobriu a "maravilha" de ser mulher, ela diz q os homens querem mandar no mundo porque a barriga deles só produz cocô, a nossa produz vida.

Outro ponto de semelhança entra as mulheres é a certeza de que nada deve ser apagado da memória. Elas sofreram crimes que tem culpados, os quais devem pagar por eles. Elas lutaram por uma outra sociedade, uma melhor. Criméia de Almeida sobreviveu ao Araguaia, Jessie Jane sequestrou aviões, todas sofreram violência física, sexual e psicológica, têm a marca de serem acusadas de criminosas, mesmo sabendo que não eram, que não são. São heroínas sim, mas querem apenas ser gente. Quase 20 anos depois, elas agem, lutam cada uma de sua forma, como historiadoras, educadoras, em grupos femininos de bairro, em partidos políticos, mas sem deixar de pensar no social, sem deixarem de serem guerreiras.

Termino conectando a tristeza e o pessimismo da nossa personagem sem nome, que finaliza o documentário atrás das grades do seu apartamento, em analogia às grades da prisão, se denominando um "cachorro ferido", com um trecho do texto de Cesar Kiraly sobre o filme: "porque é na feminilidade, dilacerando-a, que a tortura realiza os efeitos mais nefastos, porque a tortura, historicamente defendida, atualiza uma estratégia de dominação sobre as mulheres e a expande para todos os cantos. A tortura se firma como um constrangimento público para se falar dela, tornando, como instrumento de sua instituição, a vítima em seu próprio algoz. Publicamente o torturado é interpelado como aquele que esconde os motivos que o levaram a ser colocado naquela posição. Resta um contínuo: ‘o que será que ela fez para merecer?’ Mais ou menos como a antiga indagação acerca da responsabilização da alma por alguém ter nascido mulher."²

Link do filme pelo Emule:

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1. Entrevista de Lúcia Murat à Revista Época http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT935838-1655,00.htm

2. Texto do sociólogo Cesar Keraly à Carta Maior http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16433&editoria_id=5

Fotos: http://www.taigafilmes.com/quebomte.html




segunda-feira, 14 de junho de 2010

O binarismo essencial em Amor & Sexo



Amor & Sexo é um programa de auditório da Rede Globo de Televisão, e tem forte preocupação com o entretenimento, apresentado pela modelo e atriz Fernanda Lima, que se propõe a debater, de maneira descontraída, temas relacionados ao sexo e amor.

Analisando Amor & Sexo segundo a perspectiva dos Estudos Culturais, corrente que pretende estudar a cultura contemporânea através de seus produtos, entende-se esse produto midiático como uma prática social significativa que constrói determinados discursos. O discurso, por sua vez, está inserido em uma formação discursiva composta pelo conjunto de significados hegemônicos de sua época.

A concepção do discurso como algo sempre construído na relação com um contexto desemboca na constatação de que os critérios para o julgamento da verdade também são contextuais. Logo, não existe verdade em absoluto ou, se existe, não está acessível aos humanos que estão invariavelmente perspectivados. Foucault afirma que existem formações discursivas que sustentam determinados regimes de verdade. Nesse sentido, os discursos constroem para si regimes de verdade – isto é, um ambiente em que se passam por naturais (não-históricos), “verdadeiros”. Muito embora, uma vez que a história é entendida como variável, não seja possível mais falar em verdade, e sim em coerência. Assim, antes de ser verdadeira ou falsa, uma proposição deve estar “dentro do verdadeiro”.

Para Foucault, portanto, o conhecimento é sempre uma forma de poder. O que pensamos que sabemos sobre determinado tema tem relação com o poder deste discurso de impor-se como “verdade”. Com isso, não se pode falar de uma verdade absoluta a priori de uma cultura, e sim, de uma formação discursiva que sustente um determinado regime de verdade.


No principal quadro do programa, a julgar pelo tamanho proporcional em relação aos outros quadros e pelas produções que giram em torno dele, o Strip Quiz, os convidados em par, formado por um homem e uma mulher, sempre com performance heterossexual, devem opinar sobre afirmações baseadas em generalizações acerca do seu respectivo sexo. Como exemplo, temos as seguintes perguntas feitas para a atriz Mariza Orth, na terceira edição do programa: “Toda mulher espera que o homem ligue no dia seguinte. Verdade ou mentira?”. Ou, ainda, a pergunta feita para a humorista Maria Paula, na quinta edição: “Não existe mulher difícil, existe mulher mal cantada. Verdade ou mentira?”.

Como fica evidenciada nas perguntas do Strip Quiz, a representação da sexualidade no programa é, predominantemente, marcada pelo binarismo essencial entre o macho e a fêmea. As diferenças entre eles são postas de maneira naturalizada, em última instância, de origem biológica. No jogo do binarismo, as mulheres são tratadas como naturalmente mais “complexas”, “emotivas”, “sentimentais”. Enquanto entende-s que os homens guiam sua prática sexual pelo instinto, tais como animais.

Há uma prescrição do que é ser homem e do que é ser mulher, como exemplifica a fala da apresentadora Fernanda Lima, na sexta edição do programa: “Homem não precisa tirar sobrancelha, não”. Ou, ainda, na segunda edição quando Fernanda Lima pergunta para a convidada Giovana Antonelli: “Dizem que a felicidade do homem está na cama e na mesa. E a felicidade da mulher?”. E Giovanna responde: “Acho que está no dia-a-dia, no compartilhar, no companheirismo, na troca, na gentileza. Acho que a mulher gosta de reunir mais quesitos e acho que o homem tem uma coisa mais prática. E eu acho que a mulher é um conjunto de coisas que vai fazer aquela relação, aquele homem ser incrível”.

O discurso predominante reforça a ideia de que todos os homens tem um modus operandi e todas as mulheres outro, de que as diferenças entre homens e mulheres estão baseadas em uma essência da origem, de que os homens vieram de Marte (são guerreiros) e as mulheres de Vênus (são para o amor).

Os dez episódios que foram ao ar estão disponíveis no site oficial do programa, e alguns podem ser encontrados no youtube.



domingo, 13 de junho de 2010

Sem sexo e sem cidade



O cenário não é mais a Nova York do século XXI. Em cena, nem de longe percebemos as quatro mulheres pós-feministas, com seus direitos “igualados” aos dos homens, compartilhando o mesmo espaço profissional que eles e desfrutando da sua sexualidade sem nenhum pudor. Pode não parecer, mas estamos falando de Carrie, Charlotte, Miranda e Samantha, personagens de Sex And The City.

A volta dessas quatro mulheres nas telas do cinema produz um ar de frustração e saudosismo em quem encontrou alguns méritos na série homônima da HBO. Limitadas a conflitos banais, o novo filme Sex And The City traz personagens infantis e caricatas que renegam todas as práticas políticas do feminismo e reduzem a liberdade e a conquista do “eu” feminino a um amontoado de inutilidades.

Na trama, Carrie vive a crise de seus dois anos de casamento. Samantha passa por uma grave crise financeira; Charlotte evidencia as dificuldades advindas com a maternidade. São esses os fios condutores que levam as quatro amigas a se reunirem novamente, desta vez rumo a um mundo bem diferente da cosmopolita Nova York.



Estereotipadas, Carrie, Charlotte, Miranda e Samantha continuam representando aquilo que, no senso comum, seriam significações atribuídas ao universo feminino: consumismo, beleza, romance, sexo, maternidade. Baseado neste pensamento hegemônico de “ser mulher”, as amigas, que na Big Apple se mostravam libertárias e inspiradoras, se tornam inconvenientes e impertinentes nas quentes areias dos Emirados Árabes.

A busca pelo prazer feminino, que nos episódios da série se faz como uma espécie de resistência ao poder masculino, é apresentado desta vez com grosseria e desrespeito pela cultura e costumes alheios. Insaciável como sempre, Samantha perde a pertinência e comicidade de outrora, e traz um “quê” de vergonha às amigas – e às espectadoras, por extensão – sendo humilhada no mercado de Abu Dhabi.

Outra representação identitária que certamente incomodou a muitos espectadores aparece logo no início do filme, em uma espécie de tributo ao público gay. Na cena, homens “desmunhecados” representam o casamento homossexual, desconsiderando o gênero e suas variedades de formas de interpretação, simbolização e organização das diferenças sexuais nas relações sociais (NATANSOHN, 2003).

Saldo positivo para Charlotte, que volta à maturidade do roteiro original ao trazer para o público uma conversa madura com Miranda sobre as dificuldades da maternidade e sua dedicação à família. Bons minutos do longa, interrompidos por sra. Bradshaw e seu dilema de trair ou não Mr. Big com o saudoso Aidan – personagem interessante dos tempos áureos da série.

Para Gramsci, autor recorrente aos Estudos Culturais, o conceito de hegemonia é concebido enquanto direção e domínio. Ela atua como conquista, através da persuasão e do consenso, não apenas no âmbito econômico e político da sociedade, mas também sobre o modo de pensar, sobre as orientações ideológicas e inclusive sobre o modo de conhecer. É claro que pensar hegemonia é ressaltar que ela está sempre como fonte de disputa, num misto de resistência e cooptação dos atores sociais.

Deste modo, falamos em hegemonia como um conceito que ultrapassa as ideologias e as formas de cultura na análise do filme Sex and The City 2, ao verificar como ela opera na construção das personagens e no engendramento da trama. Segundo a narrativa do filme, o “happy end” de Carrie só é concretizado quando finalmente há a reconciliação com Mr. Big, que, vale dizer, precisa ter uma cena tão grandiosa quanto os contos de fada.