sábado, 22 de maio de 2010



Gênero e Telenovela


Questões de gênero são comumente tratadas na teledramaturgia brasileira, não sendo raras as tramas nas quais o tema ganha destaque. Em O Rei do Gado, a atriz Sílvia Pfeifer vive Léia Mezenga, personagem através da qual temas como adultério e violência contra a mulher são discutidos. Na novela Barriga de Aluguel, inseminação artificial, bebês de proveta e esterilidade feminina são assuntos postos em debate. Mais recentemente na telenovela A Favorita, Lília Cabral interpretou Caroline Monteiro, mulher violentada cotidianamente pelo marido alcoólatra. Os exemplos são muitos.

Além de discutir questões relativas a gênero diretamente, faz-se necessário observar que produtos midiáticos, como a telenovela, estão sempre a representar mulheres e homens e na maioria das vezes, ou mais expressamente, sempre, o casal protagonista é formado por um exemplar de cada um dos gêneros.

Desta forma são reforçadas determinadas práticas e atitudes entendidas como naturalmente femininas ou masculinas. Chega a ser difícil ver cenas onde os mocinhos se debulham em lágrimas. Já as mocinhas, ah, como choram, lembram de Ana Paula Arósio em Terra Nostra?

Bem, o fato é que determinadas normas são constantemente reiteradas através destes produtos.

Os personagens das telenovelas globais são facilmente identificáveis como pertencentes ao sexo masculino ou feminino, seja por seu discurso, performance, ou modo como se vestem. Há, no entanto, um que nos chama a atenção por embaralhar estas categorias.
















Buba


No ano de 1993 ia ao ar pela primeira vez a telenovela Renascer, de Benedito Ruy Barbosa. Entre tantos personagens estava ela: Buba (Maria Luiza Mendonça), a única personagem intersexo, ou como ela mesmo dizia, hermafrodita, da história da teledramaturgia global.

De acordo com a Wikipédia, entre os horários das 18, 19, e 20h já foram exibidas cerca de 233 novelas. Pois é, em uma delas, apenas uma, existiu alguém que colocou em cheque, de modo bem ra

dical, a estabilidade das categorias de gênero tais como costumamos entendê-las.

A primeira aparição de Buba em Renascer se dá no sétimo capítulo da novela e nos diz muito a respeito das relações de gênero e sexualidade:




(A cena a que me refiro começa em 04’20’’)

Podemos perceber nessa cena como a dubiedade em relação ao sexo e gênero de Buba é tratada. Muitas vezes a personagem afirma que é uma “mulher de verdade”, mas volta e meia ela afirma que é hermafrodita. Em outro momento Eliana, ex-mulher do seu namorado, acredita que Buba é uma travesti e assim, através de nomenclaturas diversas, a estabilidade da sua categoria de gênero é sempre, de algum modo, abalada.

Nesta cena, Buba pede pra ser levada ao banheiro, pedido ao qual Zé Venâncio, seu namorado, está pronto a atender, no entanto ele se confunde em relação a que lado seguir. Não fica claro para o espectador se ele pensou em levá-la ao banheiro masculino ou se simplesmente confundiu-se em relação à direção. No entanto essa breve hesitação em relação a que lado se dirigir pode ser entendida como uma das ferramentas do autor para provocar o espectador, lembrando-o sempre, que apesar da “aparência feminina”, Buba não é uma “mulher como as outras”.

Zé Venâncio define-a como uma PHF, explicando ao público que a personagem é uma pseudo-hermafrodita feminino, salientando o fato de que pseudo- significa falso, o que garantiria a Buba o status de mulher.

Em Herculine Barbin – Being the Recently Discovered Memoirs of a Nineteenth Century French Hermaphrodite, Michel Foucault (1980) relata-nos que nem sempre a intersexualidade foi tratada como nos dias atuais. Segundo ele, por mais que encontremos registros de intersexos condenados a morte em tempos ancestrais e na Idade Média, também é possível encontrar relatos em que eram tratados de outra forma; decisões jurídicas que revelam que um corpo com características dos dois sexos era inteligível como tal. Aquele que era hermafrodita tinha que decidir por um sexo apenas quando estivesse prestes a se casar e o fato só se tornaria um problema se ele/ela voltasse atrás depois da decisão tomada.

Principalmente após o século XIX, segundo o autor, é que se pensou o sexo como algo que esconde uma determinada verdade e, por isso, ele também precisa ser um “sexo verdadeiro”. Nas palavras de Foucault: … quando confrontado com um hermafrodita, o médico não estava mais interessado em reconhecer a presença de dois sexos, justapostos ou intercalados, ou em saber qual dos dois prevaleceu sobre o outro, mas antes, em decifrar o verdadeiro sexo que estava escondido por baixo das aparências ambíguas. Ele tinha, por assim dizer, que tirar o corpo do seu engano anatômico e descobrir o único sexo verdadeiro por trás dos órgãos que poderiam estar simulando o sexo oposto. Para alguém que sabia como observar e conduzir um exame, estas misturas de sexo não eram mais que disfarces da natureza: hermafroditas eram sempre ‘pseudo-hermafroditas’”.

A fala de Zé Venâncio em relação à intersexualidade de Buba revela uma visão que exclui o sujeito que se encontra fora da divisão binária simplista homem/mulher.

No decorrer da novela, Buba expressa constantemente a vontade de ter filho, segundo ela é uma necessidade. Ao mesmo tempo a personagem se mostra bastante frágil, sempre pedindo proteção ao seu namorado. A performatividade de gênero de Buba faz com que ela seja facilmente entendida como uma mulher.

Até então tudo parece um tanto “coerente”, não fosse o fato de Buba se negar veementemente a se submeter a cirurgias normativas. Ela se sente mulher do jeito que é: com batom, vestido e “genitais ambíguas”. Quando Venâncio sugere que enfrentar a cirurgia é mais fácil do que enfrentar o preconceito, a resposta de Buba é incisiva: “Mais fácil pra você!”

Cabe a pergunta: Quem precisa de vagina para ser mulher?


Um comentário: